Um caso de enriquecimento injusto protegido pela Justiça?

A discussão sobre a retroatividade dos alimentos à data da citação sempre levanta dúvidas e inquietações, principalmente entre aqueles que vivem de perto a realidade dos processos familiares. De um lado, há quem dependa dos alimentos para manter o básico do dia a dia. Do outro, há quem, mesmo de boa-fé, tenta cumprir sua obrigação com o que pode, enfrentando dificuldades para manter as contas em dia. E é nesse cenário que a aplicação rígida da retroatividade pode se tornar uma verdadeira armadilha.

Como é hoje

Há uma regra prevista no artigo 13, parágrafo segundo, da Lei de Alimentos, cuja dicção é a de que os valores fixados devem valer desde o momento em que o alimentante é citado. O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, consolidou esse entendimento por meio da Súmula 621, que afirma que, mesmo em casos de redução, aumento ou até extinção da obrigação, os efeitos voltam à data da citação, sem possibilidade de compensação ou devolução. Trata-se de uma leitura que, embora pretenda proteger quem recebe os alimentos, muitas vezes ignora a realidade prática enfrentada por quem paga.

Onde está a iniquidade contra a boa-fé

Na prática, isso pode causar situações consideradas injustas. Imagine alguém que, ao ser citado, começa a pagar espontaneamente um valor razoável, compatível com suas possibilidades. Meses depois, ao final do processo, o juiz fixa um valor maior do que aquele que vinha sendo pago. Pela regra da retroatividade, a diferença entre o que foi pago e o que foi fixado vira dívida. E não é uma dívida qualquer: é uma dívida que pode ser cobrada judicialmente, com todas as consequências que a execução de alimentos permite, inclusive penhora e, em casos mais graves, até prisão.

É importante destacar que essa dívida retroativa pode surgir mesmo quando o alimentante agiu com responsabilidade, buscando cumprir sua obrigação conforme sua capacidade financeira. E é justamente essa boa-fé que parece ser ignorada quando se aplica a regra de forma automática. O que era para ser um esforço em colaborar se transforma em risco de endividamento, e isso não parece justo.

O prêmio para quem agiu de má-fé

Enquanto isso, quem deixou de pagar ou pagou menos, muitas vezes por escolha, pode acabar beneficiado. Se, por acaso, a pensão for reduzida ou extinta ao final da ação, esses valores também retroagem e, pela lógica da irrepetibilidade, não precisam ser pagos nem devolvidos. Ou seja, o inadimplente pode ser premiado, e o responsável, penalizado. Há um evidente desequilíbrio nisso, um descompasso entre justiça formal e justiça concreta.

Claro que ninguém discute a importância de proteger quem depende dos alimentos. A pensão alimentícia tem natureza urgente e vital, e deve garantir o mínimo existencial de quem precisa. Mas proteger não pode significar punir quem tentou fazer sua parte com honestidade. O Direito de Família deve ser um espaço de equilíbrio, onde o cuidado com as pessoas esteja acima de regras frias.

Qual poderia ser o melhor caminho

Alguns juízes, ao se depararem com essas situações, têm adotado soluções mais ajustadas. Em casos específicos, autorizam a compensação dos valores pagos a mais ou reconhecem que a retroatividade não pode prevalecer quando há evidente desequilíbrio entre o que se pagou e o que se devia. O Superior Tribunal de Justiça, embora majoritariamente mantenha o entendimento consolidado na Súmula 621, já decidiu em casos pontuais pela possibilidade de compensação, especialmente quando há risco de enriquecimento sem causa. No REsp 1.785.303/AM, por exemplo, reconheceu-se a possibilidade de abatimento de valores pagos indevidamente, mesmo em se tratando de alimentos, diante da prova inequívoca de má-fé e do desequilíbrio que isso causaria ao alimentante.

Destaca-se que a aplicação automática da retroatividade, sem considerar as circunstâncias do caso concreto, fere princípios fundamentais como a boa-fé objetiva, a proporcionalidade e a vedação ao enriquecimento sem causa. Há clara violação à justiça material quando quem cumpre espontaneamente com sua obrigação é penalizado financeiramente por uma decisão judicial que ignora seu esforço contínuo.

O tempo capitaliza a injustiça

O problema se agrava quando se considera o tempo médio de tramitação de ações de alimentos no Brasil, que pode ultrapassar dois ou três anos. Durante esse período, a diferença acumulada entre o valor pago e o valor fixado ao final pode se tornar impagável, especialmente para alimentantes com renda limitada. Um aumento de cem reais mensais ao longo de três anos, por exemplo, representa uma dívida de mais de três mil reais. E essa quantia pode ser cobrada de uma só vez, acrescida de juros, multa e honorários, colocando em risco o mínimo existencial do próprio devedor.

Solução de longo prazo

Seria importante que a legislação ou os próprios tribunais criassem mecanismos para lidar melhor com esses casos. Talvez seja hora de repensar a forma como se aplica a retroatividade, distinguindo situações em que ela se justifica, como quando há majoração em benefício de quem realmente precisas, daquelas em que ela apenas impõe mais sacrifício a quem já vinha cumprindo sua parte.

Enfim, a boa-fé precisa ser valorizada. Quem age com responsabilidade não pode ser tratado da mesma forma que quem simplesmente cruza os braços. O Direito deve ser sensível à realidade das pessoas, especialmente em temas tão delicados como a pensão alimentícia. E sensibilidade, nesse caso, significa reconhecer que justiça não se faz apenas com base em datas e formalidades, mas com olhar atento para os esforços de cada um.

Matheus Baglioni de Jesus

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