O Nascimento de uma Inconstitucionalidade ?

A Lei nº 15.040/2024, que disciplina os seguros privados no Brasil, e entrará em vigor em dezembro deste ano (art. 134 da citada lei), representa um marco regulatório relevante para o mercado segurador, importante pilar da economia nacional. De fato, o setor era até então disciplinado por normas infralegais expedidas pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), por dispositivos do Código Civil e por leis esparsas. Agora, com uma legislação própria e sistematizada, busca-se conferir maior segurança jurídica às relações securitárias.

Entretanto, com a devida vênia, a nova legislação traz dispositivos que ensejam uma reflexão mais detida sob a ótica constitucional. É o que se pretende aqui: fomentar o debate sobre a possível inconstitucionalidade de determinado comando contido na nova lei.

O ponto central da nossa análise reside no teor do parágrafo 6.º do art. 86, que dispõe: “A recusa de cobertura deve ser expressa e motivada, não podendo a Seguradora inovar posteriormente o fundamento, salvo quando, depois da recusa, vier a tomar conhecimento de fatos que anteriormente desconhecia.” (não grifado no original).

O parágrafo sexto do artigo 86, retro reproduzido, não nos apresenta qualquer dúvida, estranhamento ou dificuldade na parte que determina que a eventual recusa da Companhia Seguradora deve ser expressa e fundamentada. Também não suscita maiores reflexões ou questionamentos quando assevera que fatos novos ou anteriormente desconhecidos autorizam novos pronunciamentos do Segurador.

O ponto que causa estranheza (e desconforto), por seu aparente desajuste e equívoco técnico, é impedir que o Segurador, acaso observe (depois de sua manifestação formal inicial) mais algum ponto na regulação do sinistro que autorize a negativa de cobertura (por questão alheia ou diversa daquela anteriormente declinada), simplesmente não possa mais fazê-lo, sendo-lhe previa e peremptoriamente negado suscitar esta eventual controvérsia (seja na via administrativa, seja na judicial).

Parece-se que se privilegia aqui a injusta vantagem, o eventual lucro indevido (ou ilícito) em detrimento da boa-fé e equilíbrio contratual que deve existir entre as partes, tudo na sanha e afã de ser dar uma pretensa “agilidade” ao processo administrativo de regulação de sinistro.

Embora o Legislador tenha aparentemente tentado, nesse caso, conferir mais velocidade, segurança e estabilidade ao Segurado quanto às razões de eventual recusa da Companhia Seguradora a determinado sinistro, o que, em tese, é louvável, fato é que este dispositivo carrega uma série de tensionamentos com princípios e garantias constitucionais de envergadura, que conduzem aparentemente à sua absoluta e completa inconstitucionalidade no ponto retro negativamente destacado. Vejamos os princípios constitucionais aparentemente afetados, de forma negativa, pela norma legal ora escrutinada:

  1. Princípio da Igualdade e da Isonomia (art. 5º, caput, CF): A vedação imposta à Seguradora aparentemente rompe, ao nosso ver, com o princípio da isonomia processual e contratual. É que, enquanto o Segurado poderia, a qualquer tempo, complementar informações, documentos, argumentos ou até mesmo reformular pedidos ou inovar em relação a eles, a Seguradora ficaria rigidamente “presa” aos eventuais fundamentos apresentados na sua primeira manifestação de recusa. Parece-nos que tal assimetria viola, diretamente, a cláusula da igualdade perante a lei estabelecida pelo Legislador Constituinte, impondo à Seguradora um ônus desproporcional, o que não é imposto às demais partes da relação securitária.

     Vê-se aqui um “desequilíbrio” que aparentemente compromete, de forma fatal e incontornável, a igualdade e isonomia que se deve guardar entre as partes, afetando-se de forma negativa até mesmo a “paridade de armas” que se deve observar tanto no âmbito administrativo da regulação do sinistro quanto no âmbito judicial numa eventual discussão do contrato de seguro.

  • Princípio da Proporcionalidade e da Razoabilidade: Parece-nos que o parágrafo 6.º do art. 86 não observa os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade, na medida em que:
  • Desconsidera a própria dinâmica do contrato de seguro, que é técnico, complexo e muitas vezes exige diligências posteriores para apuração adequada dos fatos;
  • Impõe um ônus administrativo e processual desigual e excessivo à Seguradora, que se vê obrigada a antecipar, já na sua (primeira) eventual negativa, toda e qualquer tese defensiva, sob pena de “preclusão administrativa” das questões que posteriormente, com mais tempo, vagar ou atenção, vier a observar, algo que não se exige do segurado ou dos demais atores do Contrato de Seguro.
  • Restringe de forma desproporcional e desarrazoada o exercício do legítimo direito de defesa, comprometendo o equilíbrio contratual e afetando o próprio funcionamento do Mercado Segurador.
  • Restrição ao Direito de Defesa Contratual: A limitação imposta aparentemente compromete, de forma incontornável, o exercício pleno do direito de defesa da Seguradora. Isso porque, ao se proibir a eventual inovação de fundamentos que autorizem uma negativa de cobertura do seguro após uma “primeira” negativa (inicial), tolhe-se o exercício do contraditório substancial, que não se limita aos processos judiciais, mas também se estende às relações administrativas e negociais complexas, como é o caso dos contratos de seguro. A vedação cria, portanto, uma espécie de “preclusão administrativa”, o que não se vê, por exemplo, no direito processual civil, que permite, ao contrário, a constante evolução da tese jurídica e dos fundamentos, conforme o desenvolvimento dos fatos e das provas.
  • Princípio da Boa-Fé Objetiva: Ao invés de efetivamente promover a colaboração, a lealdade e o dever de esclarecimento, que são elementos estruturantes e essenciais da boa-fé objetiva, o dispositivo legal em análise acaba por desvirtuar tal princípio, estimulando condutas defensivas e, por vezes, excessivamente formalistas. Na prática, impõe-se à seguradora o ônus de apresentar, já no momento inicial da regulação do sinistro (muitas vezes ainda sob uma verificação preliminar, de caráter precário e genérico), todos os eventuais fundamentos que possam justificar uma negativa de cobertura. Caso contrário, corre o risco de ver tais fundamentos posteriormente considerados preclusos, o que, por conseguinte, também inviabiliza que diligências complementares revelem à seguradora elementos técnicos ou fáticos, até então não perceptíveis, que poderiam, inclusive, ensejar o próprio deferimento da cobertura securitária. Em verdade, o estímulo que a norma busca conferir às partes, nesse aspecto específico, não se coaduna com a lógica da boa-fé objetiva. Ao contrário, revela-se incompatível com a evolução doutrinária e jurisprudencial desse dever, que impõe às partes uma postura cooperativa, transparente e proíbe condutas que configurem armadilhas de natureza administrativa ou processual.
  • Princípio do Acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, CF): Parece-nos que o parágrafo sexto do artigo 86 também fere, de forma reflexa, o princípio do acesso à justiça, não apenas no seu aspecto formal (de ajuizar ações), mas principalmente em sua dimensão material, que exige que as partes tenham real possibilidade de apresentar, ao longo do procedimento, seus fundamentos, argumentos e elementos probatórios. Ao impedir a Seguradora de eventualmente complementar, ou ajustar, os fundamentos de sua decisão administrativa, cria-se uma barreira artificial à plena tutela dos direitos, ferindo diretamente o direito de acesso à ordem jurídica justa.
  • Princípio da Ampla Defesa e do Contraditório (art. 5º, LV, CF): O comando que impede a inovação posterior de fundamentos atinge a essência do princípio da ampla defesa e do contraditório, que garante a todos, em processos judiciais e administrativos, “o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Na prática, tal vedação não encontra paralelo sequer no processo civil, onde é absolutamente aceitável, e garantido, que as partes ajustem suas teses à luz da evolução dos fatos e das provas. Impor essa restrição apenas à seguradora representa criar uma exceção que viola diretamente cláusula pétrea da Constituição.
  • Supremacia da Constituição: Ao impor uma restrição que colide frontalmente com garantias constitucionais, a norma em questão afronta a supremacia da Constituição Federal. Nenhuma lei ordinária pode criar preceitos que restrinjam ou esvaziem direitos fundamentais, como o contraditório, a ampla defesa e a isonomia, pilares do Estado Democrático de Direito. Portanto, qualquer leitura ou aplicação desse dispositivo deve estar submetida ao controle de compatibilidade com o texto constitucional. Caso contrário, estar-se-á diante de uma norma formalmente válida, mas materialmente inconstitucional.

Parece-nos, diante do exposto, que a “preclusão administrativa” contida no § 6º, do art. 86, da Lei 15.040/2024, apresenta, ao menos em tese, vícios materiais de inconstitucionalidade, por aparentemente violar a igualdade, a proporcionalidade, o acesso à justiça, o contraditório, a ampla defesa, e, por consequência, a própria supremacia da Constituição Federal.

Eventual enfrentamento judicial desse comando poderá conduzir tanto à sua declaração de inconstitucionalidade, quanto a uma interpretação conforme a Constituição, no sentido de que a vedação à inovação de fundamentos não impede a complementação de argumentos técnicos, jurídicos ou probatórios surgidos no curso da análise do sinistro, sejam fatos novos ou elementos de difícil constatação no momento inicial.

Artigo em coautoria dos Advogados Ciro Brüning (OAB/PR 20.336) e  Daniel Pereira (OAB/PR 19.432) da Brüning Advogados Associados.

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